Há muitas histórias que pontuam 25 anos de crescimento da cultura hip-hop em Portugal, uma viagem que recua a “Rapública” e chega ao presente, no momento em que um disco de hip-hop português consegue ocupar o primeiro lugar da tabela de vendas naciona.
É
possível ler no cartaz de um festival no mais remoto Alto Alentejo uma
metáfora para a história do hip-hop ‘tuga’: de um lado Boss AC, o mais
resistente dos veteranos da cena nacional, representante da primeira
leva que assolou o país em 1994, com a edição de “Rapública”; do outro
lado, os Wet Bed Gang, representantes de uma nova escola que aprendeu a
funcionar no presente com outras ferramentas de afirmação; no meio,
Gabriel, O Pensador, rapper brasileiro com responsabilidades diretas em
toda esta saga – rima Boss AC em ‘O Verdadeiro’, tema do seu mais
recente trabalho, “A Vida Continua”, que “aos poucos fez-se justiça”,
antes de rematar com “o Pensador mostrou que a língua lusa era a
premissa”. De facto, a língua portuguesa tornou-se o barro que inúmeros
artistas moldaram numa mensagem de apelo universal que um quarto de
século depois das primeiras experiências se afirmou perante uma nova
geração que oferece milhões de views aos principais artistas
nas plataformas de streaming e que enche concertos e festivais por todo o
país. Houve, no entanto, um longo caminho a percorrer.
Da
autoria de Emanuel Ferreira e António Contador, o livro “Ritmo e
Poesia” dava conta em 1997 – invulgarmente em cima do acontecimento –
das raízes exteriores e interiores desta cultura. Logo a abrir,
identificava-se uma série de parâmetros bem diferentes dos que hoje
regem o movimento. “Porquê um livro sobre rap? Porquê um livro sobre um
género musical incómodo movimentando-se nas águas conturbadas do
politicamente incorreto? O que é que faz do rap um estilo, social e
mediaticamente, opaco, e consequentemente pouco visível à superfície do
panorama musical? Que tipo de particularismos se inserem nas letras do
rap para que delas se discuta unicamente a sua controvérsia? Por que é
que a construção do seu ritmo parece tão linear e a melodia tão ausente?
Como se define um rapper e que tipo de atributos ostenta, permitindo
que se distinga sem ambiguidades de um outro artista-músico qualquer?”.
Algumas das perguntas levantadas em 1997 continuam, claro, a fazer
sentido (“como se define um rapper e que tipo de atributos ostenta,
permitindo que se distinga sem ambiguidades de um outro artista-músico
qualquer?”), mas outras já foram definitivamente ultrapassadas pelo
correr dos tempos (“O que é que faz do rap um estilo, social e
mediaticamente, opaco, e consequentemente pouco visível à superfície do
panorama musical?”) e dão hoje plena conta do período de inocência desta
cultura em Portugal.
Há
25 anos, quem entrava no hip-hop fazia-o por militância e amor, sabendo
que seria quase sempre invisível aos olhos dos media, com as playlists
das principais rádios a revelarem-se impermeáveis às suas propostas, com
espaço nulo na televisão. Hoje, nas novas plataformas de media é o
inverso que sucede, e artistas como ProfJam, Wet Bed Gang ou Piruka
colecionam com facilidade dezenas de milhões de views nos seus clips, eclipsando os números de nomes que continuam a ser vistos como a elite da cena musical portuguesa.
De
regresso a “Ritmo e Poesia”: “Miratejo está para o rap em Portugal,
como o Bronx está para o rap nos Estados Unidos. Em suma, é a Meca dos
estetas lusos dos ritmos & poesia, nesta fase inicial, ainda copiada
do irmão mais velho americano e à procura de uma maior clarividência
que irá passar decisivamente por um período de rodagem em black english.
Os rappers americanos encontram aqui uma base recetiva à sua mensagem,
tanto mais que as semelhanças entre as condições de sobrevivência em
South Bronx e a Margem Sul são facilmente apreendidas por estes
potenciais MCs. A escassez de meios é crucial na fraca visibilidade
daquilo que se vai dizendo gritando, mas não é impedimento suficiente
para calar as suas vozes, bem pelo contrário. O recurso ao beatboxing
e outras técnicas de improviso vai ditando o desenvolvimento, crucial
nesta altura, da base, sustentáculo fundamental do rap em qualquer lado.
Em qualquer lado o rap começa por ser underground. Portugal não é
exceção”.
Começou na Margem Sul
De
facto, não foi exceção. As origens desta cultura em Portugal estão
profundamente ligadas à Margem Sul do Tejo – o ‘nosso’ Bronx – e aos
fluxos migratórios que, pelo menos, desde os anos 80 possibilitaram que
chegassem ao nosso país e às comunidades africanas – mas não só – ecos
dessa revolucionária cultura americana. É, por exemplo, bem conhecida a
forte implantação de comunidades cabo-verdianas em Boston, tal como
portuguesas em Newark, também nos Estados Unidos – ou Paris, França.
Estas comunidades foram importantes pois começaram a fazer chegar até
Portugal cassetes com gravações de programas de rádio em que o hip-hop
era prato forte. E foram essas cassetes as principais disseminadoras do
‘vírus’ num primeiro momento.
Esta
ideia foi confirmada, em 1992, numa reportagem assinada para o então
semanário BLITZ pelo jornalista Miguel Cadete e pela fotojornalista Rita
Carmo que, em Almada, foram encontrar artistas como General D, One
Equal, Machine Gun Poetry ou The New Decade naquela que terá,
certamente, sido a primeira reportagem sobre a nascente cena rap
portuguesa: “Quisemos saber como tinha começado tudo, de onde tinham
vindo as ideias de fazer rap e quais as influências. Eles não esconderam
nada: ‘foi através de influências da comunidade negra americana. Entrou
e pronto. Ouvimos sons radicais vindos do outro lado do Atlântico como
Public Enemy, Run DMC, NWA... Radicais, mesmo. Isto já há uns bons
anitos. Há uns quatro ou cinco anos’. Essa foi a instrução básica que os
rappers portugas receberam e que lhes permitiu, a partir de 89, começar
a filtrar essas influências e a tornar seu um som que, sem dúvida,
preenchia as suas preferências”, escrevia-se então, a 10 de novembro de
1992, praticamente dois anos antes da edição de “Rapública”.
À
época, a ideia de integrar uma indústria e lançar discos parecia ainda
vir muito longe: “Para chegar aos concertos é preciso ter uma coisa boa
para apresentar ao público. Os discos são uma coisa que ainda está muito
longe. As pessoas não confiam, têm medo... As editoras têm medo de
arriscar, apesar de ser um estilo que na Europa já está implantado. Aqui
em Portugal, como sempre... pode ser que no futuro... Mas também não
estou preocupado com isso. Eu gostava de, principalmente, ter uma coisa
para o pessoal curtir. Desde que o pessoal esteja bem, é o que me
interessa”, desabafavam, então, à reportagem BLITZ.
A
base das Lajes, na Ilha Terceira, é também frequentemente apontada como
porta de entrada de hip-hop no nosso país, uma vez que funcionários
portugueses aí colocados tinham acesso à loja da base bem apetrechada de
CDs ao gosto dos jovens soldados americanos. Boss AC toca no assunto no
tema que divide com os Black Company no seu último álbum e que funciona
como um retrato das origens desta cultura. Rima o veterano: “Isto é
amor para a vida inteira / Começou em 86 nas Lajes na Ilha Terceira / O
Tony fez lá a tropa, trazia-me as novidades / Mixtapes americanas com as
novas sonoridades”.
Ainda na década de 80 há a registar o fenómeno do breakdance,
que se alastrou a todo o planeta por via de filmes de Hollywood como
“Beat Street”. O público português também se rendeu a estes filmes, e
ainda nos anos 80 houve a formação de uma série de crews de breakdance
no nosso país. Contudo, o rap começou a despontar através de cassetes. E
no início dos anos 90 estavam bem implantadas entre nós as sementes de
um movimento que haveria de ganhar contornos definidos com a edição em
1994 do EP de estreia de General D, “Portukkkal É Um Erro”, e sobretudo
da compilação “Rapública”, que colocaria no mapa uma série de
protagonistas do movimento ainda hoje estão ativos. É o caso de Boss AC,
Melo D, D-Mars, e, claro, dos Black Company, responsáveis pelo primeiro
mega êxito do hip-hop tuga: ‘Nadar’, o tal tema que ficou célebre
graças ao aproveitamento político do seu refrão em favor das gravuras de
Foz Côa.
Depois de “Rapública”, Mind Da Gap
Depois do tal sucesso dos Black Company, que levou a que o grupo de Gutto editasse “Geração Rasca” em 1995, o hip-hop voltou a mergulhar no underground, sendo notória exceção a atividade da editora Nortesul durante a segunda metade dos anos 90 com a edição de registos de Mind Da Gap e Boss AC e também Cool Hipnoise (grupo de Melo D pós Family) ou Ithaka (projeto do norte-americano Darin Pappas). Para lá da reduzida visibilidade destes nomes, o que existia era subterrâneo.
“Sem
Cerimónias”, o álbum com que os Mind Da Gap se afirmaram, sucessor de
um EP homónimo editado em 1997, é visto como um clássico ainda hoje.
Terá sido o primeiro registo nacional criado com as condições certas,
num estúdio de topo, com acesso a um engenheiro de som americano, Troy
Hightower, que lhe deu o boost certo nas misturas. “O ‘Sem
Cerimónias’ representa a possibilidade de existir um álbum português que
podes comparar com outra coisa qualquer que viesse dos Estados Unidos”,
explicava Ace a Rui Correia, na revista digital ‘Rimas e Batidas’ por
ocasião dos 20 anos da edição do primeiro álbum do seu grupo. “Portanto,
é como se tivesse sido o nascimento do hip-hop nacional da maneira como
foi feito daí para a frente. Existe um rap ‘antes’ e um rap ‘depois’ do
Sem Cerimónias. É engraçado, porque nós na altura só queríamos ser tão
bons como os gajos que ouvíamos, queríamos igualar em qualidade,
queríamos que os nosso flows fossem tão bons como os dos gajos que nós ouvíamos, como por exemplo os dos Boot Camp Click”.
O
MC, que continua no ativo e que em 2017 editou em nome próprio o álbum
“Marlon Brando”, prossegue na sua descrição do impacto da estreia em
formato grande dos Mind Da Gap: “Acabamos por conseguir, fazendo isso,
dar origem ao álbum que para mim é o começar de uma nova era, pós-boom
do ‘Rapública’, o começar de uma nova forma do rap nacional. Já havia
outros discos rap, os Da Weasel já tinham discos… mas em termos de
linguagem: és um fã de rap, só ouves rap americano e o ‘Sem Cerimónias’ é
o álbum [dessa época] que tu podes pôr no meio dos teus do Nas e de
Wu-Tang Clan. Queríamos que o som do disco soasse igual ou parecido, em
termos de qualidade, ao que ouvíamos em casa ou no carro”.
A era das mixtapes
Mesmo
a fechar a década de 90, o hip-hop nacional registou uma curiosa reação
à atenção quase folclórica dedicada à geração “Rapública” e mergulhou
no underground. A segunda metade dos anos 90 foi a época das mixtapes de
DJs como Bomberjack, Assassino e Kronic, e dos longos freestyles
que mais tarde ganhariam exposição na Rádio Marginal com o programa
‘Hip-hop Don’t Stop’. Sobretudo havia o grande elemento de união
nacional desta cultura que era o programa ‘Rapto’, de José Mariño, hoje
diretor da ‘Antena 3’. Aqui passaram, por exemplo, as primeiras maquetes
dos Mind Da Gap e de todos os futuros protagonistas deste movimento.
Com um circuito próprio de espetáculos e de distribuição das mixtapes, o
movimento hip-hop ganhou força entre nós e em 1999 deu-se um outro
passo crucial na evolução até ao presente: a edição do primeiro álbum de
Sam the Kid, “Entre(tanto)”; Filhos de Um Deus Menor, duo em que
militava NBC, o rapper-cantor que este ano conquistou o segundo lugar no
Festival da Canção, lançam “A Longa Caminhada”; e Micro, grupo do
veterano D-Mars, rapper e produtor que também responde ao nome Rocky
Marsiano, estreiam-se com “Microestática”, registo importante que
apontou direções a uma geração que fazia as coisas de forma
independente.
“É
um momento que me abre para o resto do underground, foi bué importante
para mim, e também foi uma honra. O álbum influenciou-nos a todos. É
importante porque vimos daquela era pós-“Rapública”, tinha havido uma
editora que tinha pegado nos rappers e feito o que quis… e o que os
Micro vêm dizer é: ‘não, mano, a gente pode’. Já estava a acontecer com
as mixtapes, mas ‘a gente pode fazer esta merda do it yourself,
como o hip hop é, e distribuir, podemos pôr isto na nossa mão’. Esse
disco é que também vai influenciar essa época que sucede a todos os
independentes todos que forjam o hip-hop português”, contava, há um par
de anos, Chullage a Ricardo Farinha, da revista ‘Rimas e Batidas’. Estes
registos vieram provar a todo o movimento que havia espaço criativo
para a exploração do formato álbum, mais refletido do que os freestyles das mixtapes, e deram origem à segunda vida do movimento com a entrada no novo século.
Bem-vindos ao século XXI
O
hip-hop nacional percebeu muito rapidamente que havia um espaço por
preencher com a entrada da nova década. O aumento dos concertos, a
intensificação do ritmo de edição das mixtapes e toda a atmosfera que
rodeava o movimento indicavam que esta seria a década do hip-hop
português. Com os media mais atentos, havia terreno para avançar. O
primeiro a fazê-lo a sério foi Chullage, com a edição em 2001 de
“Rapresálias” na primeira editora de hip-hop nacional, a Lisafonia.
Esta
foi a primeira estrutura a pensar-se como hip-hop e para o hip-hop e
foi igualmente a primeira a perceber as dificuldades que havia que
enfrentar. Chullage, explicava então ao jornal BLITZ as dificuldades de
criar em Portugal: “Senti-o em todos os aspetos. Primeiro, as pessoas
começam a dizer-me que não vai ser possível fazer um álbum de hip-hop,
ou então comentam que ninguém vai ouvir o disco. Depois, é preciso
juntar bastante dinheiro para se usar um estúdio, uma quantia que não
temos. É necessário obter-se dinheiro aqui, ali e ali, e é sempre com
descrédito porque as pessoas nem sequer acreditam que vamos conseguir
fazer um álbum de hip-hop. Há também uma cena muito má: os técnicos de
som nunca tratam o hip-hop com respeito; para eles, o som de uma música
de hip-hop está sempre bom, pois não trabalham com o mesmo fervor que
fariam se fosse uma música que eles sentissem. Isso é muito mau. Depois,
existe aquele problema com as editoras: a promoção faz-se dificilmente,
colocar-se um álbum nas lojas é também complicado. Para se fazer
hip-hop é necessário uma luta que não se trava noutros géneros
musicais”.
Rapidamente
se seguiram outras experiências editoriais, como a Loop:Recordings (que
se estreou em 2001) ou o coletivo Kombate (que surgiu em cena no final
de 2002), que reunia uma série de selos que mais tarde seguiriam
caminhos separados, como a Lisafonia ou a Footmovin’. Outros selos, como
a Matarroa, criada em 2003, também se afirmaram nesta década.
Em
2002, D-Mars, dos Micro, dava conta da nova realidade que o hip-hop de
produção nacional tinha que enfrentar: “dentro da indústria, se calhar,
temos mais noção do que é necessário do que muitos grupos que não
tiveram que passar pelo que nós passámos. Temos mais a noção do
sacrifício que às vezes é necessário. Muitos artistas pensam que só por
fazerem música e estarem numa editora estão isentos de contribuírem com o
seu esforço, e depois ainda se queixam que as editoras os exploram,
quando na verdade muitos deles nada fazem. Creio que agora percebemos
muito melhor como funciona todo o negócio. Ao nível criativo, também nos
ajudou muito o facto de mantermos a nossa independência total o tempo
todo”. As regras do jogo começavam, de facto, a mudar.
O
período de transição para o novo milénio foi decisivo na caminhada do
hip hop tuga. Foram os anos que conheceram ritmo mais intenso de
edições, que marcaram definitivamente o derrube de barreiras no que à
atenção dos media diz respeito, que assistiram à chegada de artistas
como Sam The Kid ou Boss AC aos palcos principais dos nossos festivais
de verão. Terão sido, igualmente, os anos da massificação, com a chegada
à era da série ‘Morangos com Açúcar’. Mas o sucesso não toldou as
ideias de nenhum dos protagonistas, que nunca se esqueceram de onde
vinham. Em 2003, o discurso de Boss AC ainda era o de uma desilusão pela
distração do público: “Sem dúvida. A desilusão que me acompanha é por
demais evidente no álbum todo. É uma desilusão a todos os níveis, com a
imprensa, a rádio, as editoras, os espetáculos, os espaços… É muito
difícil sobreviver a fazer aquilo que gostas neste estado de coisas.
Neste sentido, é um recado para quem quer ouvir, para os mais atentos,”
desabafava o rapper ao jornal BLITZ.
Em
meados da década passada o discurso mudou. A persistência de AC levou-o
a alcançar o sucesso que o seu talento há muito reclamava e marcou,
finalmente, o encontro do hip-hop português com o topo das tabelas de
vendas. Paralelamente, uma nova geração – com gente como Sir Scratch,
Twism, Raptor ou SP & Wilson – veio juntar-se a protagonistas já
firmados como Dealema, Xeg ou NBC na construção de uma saudável cena
nacional com todos os sabores possíveis – da política inflamada de
Valete à militância com pronúncia do norte de Mundo Segundo e restantes
companheiros.
Valete,
que em 2006 lançou o seu segundo álbum, “Serviço Público”, registo de
que ainda se aguarda sucessor, explicava à revista BLITZ uns anos mais
tarde, aquando da edição da sua compilação de participações “Na Batida
dos Outros”, que o hip-hop fez um importante trabalho no nosso país,
fruto de uma luta de denúncia cerrada que o acompanhou praticamente
desde o início: “o hip-hop foi dos movimentos que melhor fez o combate
ao racismo. E foi um combate silencioso. Há inúmeros grupos
multirraciais. É lindo. Os Grognation, por exemplo: é um grupo que tem
um moçambicano, tem um rapaz de Cabo Verde, tem pessoal português.
Existem muitos grupos assim em Lisboa. Normalmente as plateias de
hip-hop são multirraciais. E isto não se vê em quase lado nenhum. Os
africanos dizem-me que as discotecas em que eles conseguem entrar são
discotecas africanas. Têm muita dificuldade em entrar noutras
discotecas. Para tu veres uma plateia multirracial provavelmente só num
concerto de hip-hop. Mesmo num estádio de futebol, até porque a
comunidade negra ficava arrumada numa classe social baixa e os preços
dos bilhetes são cada vez mais altos, tu não vês muita plateia
multirracial. Tu vês isso num concerto de hip-hop. Os miúdos já crescem a
ver esta coisa da raça de outra forma. Muitos jovens portugueses
cresceram a idolatrar rappers negros. Ou seja, se é possível hoje
catapultar o Anselmo Ralph como um dos maiores artistas em Portugal,
acho que isso deve-se também muito ao hip-hop português”.
Outro
importante protagonista desta era é Regula. O rapper do Catujal que se
estreou em 2002 com “1ª Jornada”, haveria de lançar em 2005 uma mais
séria afirmação do seu singular talento com “Tira Teimas”, revelando-se
um artista sem papas na língua, carregado de punchlines e com flows
imaginativos. Ele haveria de ser pioneiro a apontar para outras
direções, porventura mais comerciais, que serviriam de inspiração para a
geração que nos últimos anos finalmente colocou o hip-hop português no
topo da pirâmide de streamings.
O verdadeiro boom
Vinte
anos depois do arranque de uma discografia hip-hop em Portugal, os
catálogos das principais editoras continuavam estranhamente impermeáveis
ao verdadeiro dilúvio de talentos com que este género ia inundado a
nossa cena musical. Sam The Kid, Valete, Mind Da Gap, Dealema, Capicua,
NBC, Halloween, Bob da Rage Sense, Jimmy P, NGA, Xeg: em comum, todos
estes nomes possuíam discografias independentes, por vezes até
construídas em regime de auto edição, o que significa que boa parte
desta corrente tem evoluído sem investimento de estruturas com maior
poder na nossa indústria. Exceções claras talvez só a carreira dos Da
Weasel ou a de Boss AC, que puderam contar com os favores de máquinas de
marketing mais oleadas com os efeitos comerciais que se conhecem.
Daí
que a estreia dos 5-30 no catálogo da Warner, seguindo-se a um período
de reajustamento do mapa das majors em Portugal após a venda
internacional da EMI, tenha sido uma surpresa e, potencialmente, o gesto
que finalmente escancarou as portas da primeira divisão a um género que
não se tem cansado de oferecer clássicos à memória musical nacional.
"Nunca
me coloquei em divisão nenhuma”, ressalvava então Regula que no ano
anterior, com Gancho, tinha dado um sério sinal de que poderia ir mais
longe do que as limitações da sua independência permitem. “Só me via a
chegar a uma estrutura destas no seio de um grupo, porque sempre
funcionei sozinho, através de pequenas independentes, sem nunca ter
temas a tocar na rádio”, explicava o MC. Carlão, o ex-Da Weasel que se
reinventou com os 5-30, concordava e sublinhava então que mesmo Sam The
Kid “só assinou os contratos que quis, porque convites certamente não
lhe faltaram”.
Carlão,
que se afirmou com uma das mais seguidas vozes nacionais quando
respondia pelo nome Pacman no seio dos Da Weasel, aparentemente terá
feito um voto íntimo de não retornar às rimas e chegou mesmo a avisar os
seus companheiros de aventura nos 5-30 para a sua indisponibilidade de
assumir cadências mais rap no discurso. “Quando tens dois melhores
rappers da tuga ao teu lado, a rimar, e pronto, é verdade, um gajo
sente-se contagiado. O Regula metia uma rima e eu só pensava ‘e agora?’,
mas sempre com aquela vontade de também rimar”.
Em
2015, com a edição de “Quarenta”, Carlão reclamou um novo espaço no
panorama nacional, que começava, definitivamente, a agitar-se. Carlão,
desenhava então um retrato da nova realidade de ascensão do hip-hop a
uma divisão cimeira nas páginas da BLITZ: “acho que isso já está a
acontecer, um pouco por todo o lado, aliás. As novas ‘rock stars’ vêm do
hip-hop e há mosh nos concertos de rapalhada. Em 1994 olhou-se para o
‘Rapública’ como o boom do rap em Portugal e isso foi uma mentira,
porque havia um desconhecimento completo – não havia estúdios, nem
técnicos, nada. Foi preciso os protagonistas fazerem todo um percurso de
aprendizagem para isto rebentar. Agora, sim, há um boom”.
Nesse
mesmo período, Portugal assistiu impávido e sereno, à imposição de uma
nova voz rap no nosso país, diferente porque ostentava sotaque do Porto,
diferente porque impunha uma visão feminina do mundo, diferente porque
as suas palavras pareciam abrir um outro tipo de espaço. Capicua deu os
primeiros sinais mais sérios com a edição de um EP na Optimus Discos em
2012, a que se seguiriam dois álbuns, em 2014 e 2015, na Valentim de
Carvalho: “Sereia Louca” e o registo de remisturas “Medusa”. Capicua, em
conversa para um dos livros da série ‘Debaixo da Língua’ (edição do
festival O Sol da Caparica), colocava-se no centro da história do
hip-hop tuga, assumindo ser descendente de grupos como os Dealema,
guardiões até aos dias de hoje de uma chama original desta cultura.A nova geração
Emoções
fortes é o que se sente no ar de cada vez que um dos nomes de uma nova
leva de rappers em perfeita sintonia com as novas gerações sobe a um
palco. Ao mesmo tempo que as editoras foram finalmente abrindo espaço
nos seus catálogos a jovens artistas vindos destes terrenos – a
Universal inaugurou a tendência com a assinatura de Valas e a Sony
seguiu-lhe os passos com a contratação de Bispo – continuam a existir
nomes de primeira linha que preferem trilhar o seu próprio caminho, sem
esses amparos mais corporativos.
Piruka
ou Slow J são exemplos opostos nesse panorama, separados pela força dos
números obtidos nas redes, mas unidos pelo facto de cada um ser dono do
seu destino. Há um par de anos, Piruka, admitia à BLITZ não ter grande
noção do volume de streams alcançado nas plataformas digitais: “Sei que já passámos os 25 milhões de plays
do álbum no Youtube, porque os números aparecem quando espreito os
vídeos”. Contando hoje com mais de meio milhão de subscritores no seu
canal de YouTube, o rapper tem vários vídeos que já ultrapassaram
folgadamente a marca dos 20 milhões de visualizações, facto que o
catapultou para um lugar cimeiro neste competitivo ecossistema. Como se
chega aí? “Em primeiro lugar, nunca me colei a nenhum rapper com nome”,
justifica. “Até do meu amigo Dillaz me afastei para poder seguir o meu
próprio caminho. Tenho ídolos, claro – o Sam (The Kid), o Regula... –
mas nunca me colei a ninguém”. Quando questionado sobre a receita para o
sucesso de que atualmente goza, Piruka é claro: “Pensei sempre pela
minha cabeça. Ouço críticas ou elogios, vindos das pessoas que me
rodeiam, mas na hora de decidir a minha cabeça é que conta”.
Slow
J fez um outro caminho e tem outra ideia, apesar de se afirmar
igualmente independente (pelo menos para já...). Estreou-se com o EP
“The Free Food Tape” em 2015 e firmou-se com “The Art of Slowing Down”,
em 2017, com o seu percurso em três cartazes sucessivos do festival
Super Bock Super Rock a ser indicador da sua ascensão: começou pelo mais
pequeno dos palcos, na altura programado pela Antena 3, ascendeu à
divisão ‘média’ representada pelo palco EDP, e em 2017 subiu ao palco
principal do evento, Super Bock, tendo direito a performance recebida
efusivamente na Altice Arena.
Uma
vez mais, como é quase sempre comum em todos os rappers, há também a
noção de um fio condutor, um sentido de dívida para quem antes de si
preparou o caminho. Slow J acredita que o hip-hop mudou a face do nosso
país. “De certeza que mudou, de certeza que transformou porque eu e a
minha geração crescemos a ouvir hip-hop e muita gente da minha idade
ouviu álbuns inteiros do Valete, do Sam – eu cresci muito com isso e com
essa noção ‘valetiana’ de rebeldia e, acima de tudo, de valorização das
próprias ideias. O Valete para mim sempre foi muito um símbolo do
quanto eu podia acreditar naquilo em que acredito. Não sei se havia
outro símbolo parecido que fosse tão empowering. Agora, em termos de mudanças concretas, eu não tenho bem a certeza. Teria que fazer um estudo sociológico”.